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É preciso estar atento e forte: a má notícia é que as coisas mudam. Calma, a boa notícia é que as coisas mudam.
No meio disso tudo, eu escrevo...

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

" - O falso e infeliz conceito de que o homem seja uma unidade duradoura já é conhecido pelo senhor. Também já sabe que o homem é formado por um número incalculável de almas, por uma multidão de egos. Dividir a unidade aparente do indivíduo nessas numerosas figuras é algo que passa por loucura; a ciência encontrou para esse fenômenos a designação de esquizofrenia. A ciência está certa, até certo ponto, quando afirma que nenhuma pluralidade pode conduzir-se sem uma direção, sem uma certa ordem e agrupamento. Mas, por outro lado, não tem razão ao imaginar ser possível somente uma ordenação única, encadeadora, perpétua, para a multiplicidade dos egos subordinados. Êsse êrro da ciência acarreta conseqüências desagradáveis; sua única vantajem reside na simplificação do trabalho dos mestre e dos educadores a serviço do Estado, poupando-lhes os trabalhos do pensamento e da experimentação. Em conseqüência dêsse êrro, muitos homens que passam por "normais", e até por valiosos membros da sociedade, são loucos incuráveis, e, por outro lado, muitos que passam por loucos são verdadeiros gênios. Por isso é que completamos aqui a imperfeita psicologia da ciência com o conceito a que denominamos a edificação da alma. Aqui demonstramos aos que experimentaram a destruição de seu próprio e, que podem a qualquer instante reordenar os fragmentos e com isso conseguir uma variedade infinita no jôgo da vida. Assim como o gramaturgo cria um drama a partir de um punhado de personagens, assim construímos, com as peças de nosso eu despedaçado, novos grupos com novos jogos e agrações, com situações eternamente novas. Veja só!
  Com seus dedos serenos e prudentes apanhou minhas peças, todos os velhos, jovens, crianças, mulheres; tôdas as figuras, as alegres e as tristes, as fortes e as delicadas, as ágeis e as lerdas, ordenou-as rapidamente em seu tabuleiro para o jôgo, no qual logo começaram a formar grupos, famílias, prontas a jogar e a lutar, criando amizades e inimizades, edificando todo um mundo em miniatura. Deixou desfilar diante dos meus olhos aquêle mundo liliputiano, um mundo cheio de animação mas bastante ordenado, deixou que se movesse, jogasse, lutasse, fizesse pactos, desse batalha, trocasse votos, unindo-se, multiplicando-se; era, de fato, um drama repleto de personagens, vívido e interessante.
  Logo o homem desfez o jôgo com um gesto alegre, derrubando tôdas as peças, juntando-as num monte e voltando a armar um novo jôgo com o mesmo cuidado anterior, como um artista meticuloso, com as mesmas figuras, mas em grupos diferentes, com outras interdependências e entrelaçamentos. Este segundo jôgo guardava relação com o primeiro: era o mesmo mundo, formado pelos mesmos materiais, mas nêle havia mudado o tom, o tempo, o motivo e a situação.
  E assim foi o sábio arquiteto construindo com as figuras, que eram fragmentos de mim mesmo, vários jogos, uns após outros, todos semelhantes, todos participantes de um mesmo mundo, todos submetidos a um mesmo destino, mas sempre inteiramente novos."

- O lobo da estepe, pág. 174

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