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É preciso estar atento e forte: a má notícia é que as coisas mudam. Calma, a boa notícia é que as coisas mudam.
No meio disso tudo, eu escrevo...

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Sobre tapetes, amor e cebolas

Chorava, mas chorava por dentro, porque não lhe restavam lágrimas pra escorrer.
Pedro estava ali, em pé na cozinha apertada, cortando cebolas enquanto via o dia virando noite no céu. Estava cortando cebolas, e não caía uma lágrima sequer. Já não havia mais lágrimas, havia gastado todas, uma a uma; uma pra cada minuto de felicidade que tivera ao lado da mulher que amava tanto tanto, uma para cada minuto de silêncio que fizera desde a sua morte.
Se pudesse chorar, chorava porque estava a remexer no armário em busca de um comprovante e acabou encontrando o ingresso do primeiro filme que viu com Letícia no cinema, no dia em que se conheceram. Na verdade, que não viu.
Ele estava à caminho da sala de cinema, quando viu o ingresso no chão. Pegou, deu uma olhada em volta. Uma mulher estava poucos passos à frente, observando os cartazes. Com licença moça, é seu? A moça olhou para trás com seus olhos enormes e castanhos, e Pedro nunca viu coisa mais bonita desde então. Desde a boina vermelha cobrindo parte dos cabelos pretos até a sapatilha colorida, era 1,68 de encanto. Encarou o bilhete e balançou a cabeça negativamente. É que achei no chão, e você estava perto, pensei que fosse seu... Não, na verdade eu acabei de sair desse filme. É mesmo? Eu estou indo assistir agora! A moça olhou com engraçados olhos de dó: é uma porcaria. Bem, talvez alguém tenha recebido esse aviso à tempo e desistido de assistir, disse Pedro apontando com a cabeça para o ingresso. A moça riu. Provavelmente! Pedro ficou satisfeito por tê-la entretido, e então se achou ridículo por isso. Mas era bem verdade que queria estender a conversa para ter mais alguns minutos com ela. Tinha um cheiro maravilhoso, provavelmente do perfume, e Pedro pensou em perguntar o nome. Não, que pergunta besta que seria! E se bobear ela vai achar que sou gay. Não achando nada que coubesse dizer, pensou que era melhor se apresentar logo. Sou Pedro. Letícia. Quando ela já se virava para ir embora, Pedro soltou rapidamente, como a última respirada: não quer me acompanhar? Já que o filme não valerá a pena, seria bom conversar com alguém, e esse ingresso acaba tendo um fim mais digno. Letícia achou engraçado e acabou aceitando. O nome do filme nem vem ao caso, nem mesmo assistiram. Conversaram durante o filme inteiro, riram muito, saíram antes para não serem expulsos, riram disso também, prolongaram num bar e trocaram telefones. Depois viriam muitos outros filmes, muitas conversas, muitos beijos e sexo e brigas e reconciliações e viagens e mais brigas e mais sexo e muito amor.
O travesseiro ainda tinha o cheiro do perfume de Letícia. A nostalgia que aquele aroma despertava variava de nuance ao longo do tempo, de acordo com o humor e a dor de Pedro.
Nos primeiros dias, era um conforto, como se ela ainda estivesse ali, como se a sua ausência não fosse eterna. Se era cedo da manhã, Pedro acordava sentindo aquele cheiro, e era como se Letícia tivesse ido na padaria comprar pão e logo estaria de volta. Se era noite, ela estava no cinema com as amigas. Se era madrugada, Pedro fazia esforço para pensar que ela atrasou, que esticou a saída num barzinho qualquer. Não, não um qualquer, que fica muito irreal. No Bar do Tito, que a cerveja era barata e o próprio Tito oferecia um conhaque por conta da casa para Letícia, que gostava tanto de aquecer o corpo e a alma.
Mas os dias foram passando, e a ficha foi caindo: ela não volta. Não volta não Pedro, para de teatro que o único a quem engana é você mesmo. Daí o cheiro passou a zombar dele, todo dia quando acordava, toda noite quando deitava. Queria jogar fora, mas pensou em todos os argumentos para não fazê-lo. Não podia simplesmente ir parar no lixo, seria um desperdício. Pensou em passá-lo adiante para algum amigo, mas que homem fica em paz enquanto outro dorme satisfeito sentindo o cheiro de sua mulher? Contudo, não podia doá-lo à alguém na rua, porque... bem, se não pudesse imaginá-lo sendo usado por um amigo, quem dirá um desconhecido! É, estava sem opções, teria que manter aquela lembrança ali, afinal.
Depois a convivência com o travesseiro ficou mais fácil, não porque Pedro aceitara melhor a perda, mas porque o tempo, como faz com todas as coisas,fez com que o perfume dissipasse pouco a pouco.
Aí Pedro pensou no quão voláteis são a coisas, e no quanto isso era frustrante e ridículo.
Ridículo era também que Pedro estivesse ali, picando cebolas para cozinhar um omelete às cinco da tarde, porque fazia duas horas que acordara, e tinha gastado todo esse tempo olhando para a ponta do tapete da sala. Acordou ao lado do maldito travesseiro, faminto, e no caminho da cozinha tropeçou no tapete indiano que Letícia tinha escolhido dois anos atrás, em uma venda de quintal que obrigara Pedro a ir. Quando tropeçou, fez virar a ponta, onde se viam alguns dos vários tracinhos azuis.
Letícia tinha mania de fazer uma marca com caneta do lado contrário do tapete sempre que tinham uma transa boa. Sabe como? Daquelas que começam na porta do apartamento. Ou que começam na cama, mas terminam na sala. Daquelas de orgasmos memoráveis. A primeira vez que desenhou um tracinho no tapete, Pedro estranhou. Nossa vida sexual é ótima, até parece que vai marcar só umas vezes. Não, marcaria várias. E justamente porque o sexo era bom e constante, Letícia dizia que era importante marcar, que era pra não perder o hábito, pra manter viva a mágica. Uma vez Pedro broxou, ficou sem graça, disse que isso nunca acontecia, Letícia finjiu acreditar, Pedro jurava que era verdade, e ela encerrou o assunto e pediu que ele deitasse em seu colo. Pedro reclamou que ela só estava tentando o fazer sentir melhor, Letícia riu. Não está funcinando? Até que estava. Conversaram intimidades e trocaram confidências, e acabou que foi a melhor broxada da vida de Pedro. Nesse dia, Letícia fez uma marca especial no tapete, no que Pedro protestou. Está zombando de mim! Vai marcar isso aí pra lembrar que eu sou broxa? Você não é broxa, você é o amor da minha vida. Você broxou, e isso ainda vai ser motivo de riso, deixe de ser bobo. Estava certa: Pedro hoje olha para a marca, e ri-se. Como não ria fazia muitos meses, desde que Letícia passou a ser um restinho de perfume no travesseiro, umas marcas de caneta azul no tapete, um ingresso de cinema, e tantas lembranças mais que faziam Letícia viver no dia-a-dia de Pedro. Nas lágrimas de Pedro. Nas cebolas de Pedro. No coração de Pedro. E Letícia não morreu nunca mais para ele.